Três Maçãs, Dois Castiçais e Uma Porta.
Impressões sobre Os Miseráveis (1935) Ao Bruno — porque ver esse filme com você foi tão marcante quanto o filme em si.
Ontem, assisti pela primeira vez ao filme Os Miseráveis (1935). Eu sei, meio tarde para um clássico… Eu tinha um certo medo dele, achava que era muito pesado (realmente, as outras versões são bem pesadas), mas a história vale cada sofrimento interpretado belamente na tela. Acabei assistindo por indicação do meu namorado (embora ele tenha sugerido a versão de 2012).
Esse filme é um pouco diferente das outras adaptações, especialmente das mais modernas. Como foi feita em uma época de censura rigorosa em Hollywood — sob o chamado Código Hays — o filme evita mostrar com clareza certos temas sensíveis presentes na obra original de Victor Hugo, como a prostituição de Fantine ou a corrupção aberta do sistema judicial (o que achei muito bom, já que sou um bocado sensível para essas coisas).
A história também foi bastante condensada para caber em menos de duas horas, o que fez com que muitos personagens e subtramas fossem cortados ou simplificados. Os Thénardier, por exemplo, que são figuras muito importantes no livro (que eu nunca li) e aparecem em praticamente todas as outras versões, não existem nessa. A parte política também é suavizada: os motins, os ideais revolucionários e a crítica social mais forte, que estão presentes tanto no romance quanto em adaptações como a de 2012, são abrandadas (aparentemente, já que não tenho muito como comparar). Ah, e essa adaptação não é um musical, o que é bem diferente por si só.
Essa versão de 1935 se concentra quase exclusivamente no conflito moral entre Jean Valjean e Javert, que acaba se tornando o eixo dramático do filme. Javert, inclusive, é retratado de forma mais humana do que em outras versões (o que gostei muito). A interpretação de Charles Laughton dá ao personagem uma profundidade trágica e silenciosa, especialmente no final. O suicídio de Javert, por exemplo, é mostrado de maneira respeitosa, como uma ruptura interna e dolorosa causada pela misericórdia que ele não soube como aceitar. Fantine, por sua vez, tem seu sofrimento suavizado. O filme mostra que ela adoece, que está desesperada, mas não revela que ela se prostitui para sustentar Cosette. Isso não quer dizer que a dor dela desapareça — ainda é um momento difícil de assistir —, mas não teve o peso cru da degradação social que Victor Hugo descreveu.
Assisti com meu namorado — o que deixou a experiência muito mais marcante — e conversamos muito sobre o filme entre nós dois. Trocamos ideias, nos ouvimos, e foi tão bonito como nossas visões se completaram… Confesso que não tive vontade de escrever sobre o filme, embora ele tenha me marcado bastante. Eu estava contente em guardar nossas análises entre nós dois, mas Bruno me incentivou a escrever, o que me levou a escrever esse post (que cresceu em mim e me deixou bem empolgada). Agora, tentando colocar tudo em palavras, percebo que é difícil escrever com a mesma força do que senti — mas mesmo assim, vou tentar.
Assistir a Os Miseráveis (1935) foi, para mim, mais do que acompanhar uma história — foi sentir o peso da injustiça, a beleza da misericórdia e a força de uma porta aberta no momento certo.
Puxa vida, que coisa difícil de assistir… a injustiça escancarada e impune. O filme já começa com um soco no estômago: um homem condenado por roubar maçãs para alimentar sua irmã e seus sobrinhos. O Estado que o condena é o mesmo que não lhe oferece meios dignos de sustento. É impossível não se revoltar. Escondem provas, manipulam o sistema, roubam dinheiro… Tudo isso aos olhos da justiça — uma estátua bem ali — e de Cristo — numa cruz enorme, pregada na parede perto da cela. Tão simbólico quanto cruel.

Um dos personagens mais complexos para mim foi o guarda Javert. Eu sei: ele parece frio, rígido, inflexível. Mas desde o início percebi suas rachaduras. Existe angústia ali. Quando ele observa o prisioneiro ser espancado nas galés, algo se move em seu rosto, mesmo que ele não se mexa. Aquilo era tudo o que conhecia — uma forma de sobrevivência mental. Seus pais foram pobres, prisioneiros, e ele provavelmente viveu cercado de dor e vergonha. Talvez tenha decidido, por ressentimento ou medo, ser o oposto daquilo. Viu na lei a única salvação possível. Aprendeu que ter algum valor era seguir regras à risca, ser melhor que os pais foram, jamais mostrar fraqueza, ser perfeito e útil. Ninguém nunca o tratou com bondade, então ele também nunca aprendeu como ser bom.
E, de certa forma, consegui entendê-lo. Não justifica a assídua perseguição, mas revela o motivo de sua assiduidade. Até quem parece estar no controle pode estar preso — por dentro — a uma lógica cruel.
Uma das cenas mais belas e inesperadas foi a da senhora na chuva, ainda no começo do filme. Ela avisa o ex-prisioneiro sobre qual porta deveria bater, como uma mensageira divina. Um sinal no meio da tempestade. Quando Jean menciona que sua cama — que antes, nas galés, era de madeira — agora era de pedra, me lembrei do povo de Israel no deserto: recém-liberto da escravidão, desejando voltar para o Egito. A lliberdade assusta, o deserto pode parecer mais cruel que as correntes conhecidas. Mas não o é.
Mais adiante, dentro da igreja, duas mulheres discutem se devem ou não deixar a porta aberta. Uma queria fechá-la, a outra insistia em deixá-la aberta. Era quase como se a razão e a emoção estivessem ali debatendo. E então aparece o bispo. Acolhedor. Silenciosamente revolucionário. Ele recebe o homem repudiado, o alimenta, o ouve, o credibiliza. Mesmo depois de ser roubado, ele entrega mais do que o ex-prisioneiro esperava — entrega misericórdia.
E é aí que tudo muda. Com um gesto simples. E radical. O bispo não age por ingenuidade, mas por fé. Escolhe amar. E isso planta algo novo em Jean: esperança.
Meu namorado, de forma muito bonita, me disse: “Jean Valjean mostra um lado heroico do cristianismo. Ele nunca escolhe o mais fácil, o mais confortável. Jean abdica de tudo que conquistou para salvar um mendigo, arrisca a própria vida por um rapaz que nunca viu antes, apenas porque é o amor de sua querida Cosette. É piedoso até com seu grande antagonista, Javert. E, sempre que está prestes a ceder às tentações, ele se lembra dos castiçais de prata — que, como ele diz, valem mais que ouro. Um símbolo constante daquilo que o resgatou.” E é verdade.
Bruno também lembrou de uma conversa que tivemos sobre como Deus transforma infortúnios em bênçãos. Foi justamente a injustiça das galés, o sofrimento absurdo por causa de três maçãs, que levou Jean à porta do bispo. E essa conversão silenciosa, nascida do gesto radical de um padre, transformou não só sua vida — mas a de tantos ao redor. Ele continuou: “Jean empregou dezenas, foi um exímio exemplo em sua comunidade (como todo cristão almeja ser), cuidou da pequena Cosette (tirando-a de um ambiente terrível), deu um alívio final a Fantine, e até tocou o coração endurecido de Javert.” Completando, disse ainda: “Embora Javert tenha cometido suicídio no final, um ato abominável, ele mudou seu coração graças à bondade inabalável de Jean Valjean. Isso deve contar como alguma coisa.”
E eu concordo. O que mais mexe com a gente nesse filme talvez seja isso mesmo: esse cristianismo heroico — que escolhe perder, servir, amar, e perdoar, quando o mundo inteiro nos manda fazer o contrário.
Fiquei profundamente tocada com as cenas finais.
Jean salva Marian. Faz sua última prece. É uma oração de rendição, humildade e confiança. Valjean, nesse momento, sabe que está prestes a enfrentar o que mais teme — voltar à prisão — mas também sabe que está fazendo a coisa certa. Ele já passou a vida inteira tentando viver com integridade, desde o dia em que o bispo lhe disse: “Jean Valjean, meu irmão… você deve nunca esquecer que prometeu tornar-se um novo homem. Comprei sua alma para Deus. Use essa prata para se tornar um homem honesto. Não para tirar, mas para dar.”
Sua oração é o fechamento de um arco de redenção. Simples, discreta, mas carregada de significado. Me lembrei dele na primeira noite na igreja, tendo pesadelos. E agora, ali de novo, os mesmos medos.
O único ato de comiseração de Javert, que deixa “24601” se despedir de Cosette, “apesar da lei”…
O rosto de Javert… As algemas no chão…
Ele foi tão afetado por tudo aquilo que, pela primeira vez, foi contra tudo o que ele era — e não prendeu Jean. Mas, não aguentando não executar a lei, transtornado com o confronto do amor e da justiça, tirou a própria vida.
Fiquei chocada. Com cada coisinha do filme.
Como é pequena a vida de um homem que vive para si.
Como é grande a vida de um homem que vive para o outro.
Tudo isso… porque um padre abriu sua porta.
Por dois castiçais de prata.
Por três maçãs.
Nem sei explicar…
Que filme!
A princípio, fiquei meio cético quanto à adaptação de 1935 — imaginei que seria como ver o meu musical favorito, mas sem as músicas. Mas não hesitei em assisti-la, pois é sempre bom experimentar coisas novas, ainda mais ao lado de quem se ama. E quer saber? A versão em preto e branco não deixa nada a desejar. Ela dá todo o enfoque àquilo que sempre foi minha parte favorita da história: o antagonismo entre Javert e Jean Valjean, dois personagens sensacionais. Sobretudo me emociono com o cristianismo heroico que você bem destacou.
Fico muito honrado e muito grato de ver minhas citações metidas no meio do seu português, que eu tanto admiro. Obrigado pela companhia, pelas conversas e pela dedicatória, Gabriela; você me faz muito feliz. Ótima resenha!